A guerra por um pente
Cartaz do filme "A Guerra do Pente" |
Oito de dezembro de 1959. Antônio Haroldo Tavares, subtenente da Polícia Militar, compra um pente e pede uma nota fiscal. O comerciante, o sírio-libanês Ahmad Najar, se nega a emitir o documento, talvez pelo irrisório valor, 15 cruzeiros. O policial bate o pé em nome de seu direito (e dever) de contribuinte. Para ele, não se tratava de uma questão de dinheiro, mas de princípios. Sem paciência para discutir, o dono da loja pede ajuda aos seus quatro funcionários para jogar o “problema” porta afora. No quebra-pau, Antônio tem uma perna fraturada. A cena é assistida por cerca de 30 pessoas, que, revoltadas, iniciam uma depredação do Bazar Centenário. Era o estopim para a Guerra do Pente – talvez a maior revolta popular já vista em Curitiba. Mas a real motivação para a “barbárie urbana” que estava por acontecer ultrapassava os limites curitibanos.
O Brasil vivia uma época esperançosa – pelo menos era o que dizia a propaganda oficial. Juscelino Kubitschek, com a promessa dos 50 anos de progresso em cinco de governo, buscava convencer a população do desenvolvimentismo puxado pela industrialização. O governo promovia o consumo com olhos na arrecadação. O cidadão era incentivado a pedir notas fiscais e trocá-las por cupons que davam direito a participações em sorteios de prêmios. A campanha “Seu Talão Vale 1 Milhão” era uma mania brasileira que virou até tema de marchinha de carnaval em 1960.
Mas nem tudo se resumia a confete e serpentina. Os altos índices de inflação preocupavam os pais de família. O momento também era de tensão política. Dias antes militares haviam iniciado um movimento contra o governo JK, conhecido como o Levante de Aragarças. O movimento se apagaria poucos dias depois, mas algo de instável permaneceria no ar.
Voltemos àquela terça-feira, fim de tarde em Curitiba. O Bazar Centenário está com o estoque jogado na rua. A bagunça cresceu, envolvendo cerca de 200 pessoas. A essa altura ninguém mais se importa com o comerciante que foi levado preso pela polícia ou com o fardado que seguiu de ambulância para um hospital. A região da praça Tiradentes, marco-zero da cidade e reduto de vários comércios de sírio-libaneses, abriga uma espécie de guerra. Lojas são invadidas, saqueadas e queimadas. Quem tem tempo, baixa as portas. Quem não tem, luta sem sucesso contra uma massa ensandecida. A multidão ganha o reforço dos que saem de seus serviços. O ataque ao comércio já não é o suficiente: a ira cai sobre os prédios públicos. Mostrando o caráter anárquico do quebra-quebra, o povo ataca até os carrinhos de camelôs que vendiam frutas.
Somente seis horas depois o clima começou a esfriar. A Polícia Civil contabilizou dez feridos – oito deles eram policiais. Entre os populares, mais de 30 presos, alguns com objetos furtados. Correu o boato que o protesto era coisa de estudantes. A União Paranaense dos Estudantes foi a público lavar as mãos, atitude endossada em editorial de um dos jornais da capital. O periódico dizia que os “cabeças das desordens” eram “desocupados ou operários”.
No dia seguinte, logo cedo, enquanto alguns ainda saboreavam as manchetes sensacionalistas do tumulto, uma agitação no centro da cidade anuncia o segundo dia da Guerra do Pente. O comerciante Salim Mattar, da Casa Três Irmãos, ao ver a onda de depredação se aproximando, sacou um revólver e disparou cinco tiros para cima. Uma tentativa desesperada: nem mesmo os tanques do Exército que foram deslocados para o front deram conta de amedrontar a população. Alguns tentaram aproveitar o embalo para destilar um discurso político e por pouco não levaram sopapos do povão. O momento era de ataque e só. Catarse pura, nada de teoria. O tumulto só terminaria na chegada da noite. Como motivo, algo bem curitibano: uma chuvinha típica de não deixar alma viva na rua.
Na quinta-feira, as análises colocavam mais polêmica sobre os reais motivos da Guerra do Pente. Alguém comparou a insurreição curitibana ao Levante de Aragarças. Um famoso criminalista da época creditou a violência ao alto custo de vida – um desabafo do povo. “O problema é fome”, sentenciava outro. O fato é que algo acontecera além da previsibilidade costumeira do curitibano naqueles dois dias.
Texto publicado na revista “Aventuras na História”, edição 17, janeiro de 2005
Texto publicado na revista “Aventuras na História”, edição 17, janeiro de 2005
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