Publicado em 1844, Os três mosqueteiros se tornou um dos livros mais lidos de todos os tempos. Ao recriar fatos e personagens do passado por meio da ficção, Alexandre Dumas fundou um novo gênero literário
Em março de 1844, o jornal Le Siècle começou a publicar um romance em capítulos contando as aventuras de quatro espadachins do século XVII que lutavam para desarticular uma conspiração contra o rei Luís XIII da França. O formato, muito popular na época, era o do folhetim: uma narrativa seriada, publicada em números sucessivos de um periódico. Ao longo de quatro meses, o público francês acompanhou com entusiasmo as peripécias dos quatro heróis até o último episódio da trama, que saiu em julho. O sucesso foi tamanho que naquele mesmo ano o romance foi lançado em forma de livro pelas edições Baudry com o título de Os três mosqueteiros.
A obra que colocaria seu autor, Alexandre Dumas, no panteão dos maiores escritores de todos os tempos conferiu um selo de nobreza aos romances de aventura. E mais: ao recriar com maestria fatos e personagens reais do passado por meio da ficção, Dumas fundou um novo gênero literário, o romance histórico.
Autodidata forçado, viajante inveterado, apaixonado insaciável, Alexandre Dumas conciliou plenamente as carreiras de dramaturgo, romancista e jornalista. Criticado pelos eruditos e muitas vezes banido das antologias, esse monstro sagrado da escrita fundiu as mais variadas paixões humanas nas páginas de seus livros. Seu talento era tão grande que o escritor Alain Decaux, membro da Academia Francesa, o qualificou como um “gigante” da literatura universal.
Esse reconhecimento se deve, em boa medida, à habilidade de Dumas em fundir história e ficção. Ele consultava os documentos não tanto para analisá-los, mas sim para reinventá-los. O escritor retinha da história apenas os episódios mais emocionantes e as figuras mais chamativas. Ele a revisitava, a dominava e, para melhor submetê-la à sua fantasia, a imaginava “tão maleável quanto uma luva”, como dizia Flaubert. O próprio Dumas declarou: “A história é o alicerce sobre o qual construo meus romances”.
Os três mosqueteiros não foi a primeira obra que surgiu de uma releitura do passado. Desde o fim da década de 1820, Dumas já lançava mão desse recurso para escrever peças como Henrique III e sua corte (1829) e A torre de Nesle (1832), além de romances como O cavaleiro de Harmenthal (1842). As aventuras de D'Artagnan e companhia, no entanto, marcariam um ponto de inflexão na carreira do autor.
Os documentos por trás da ficção
A narrativa de Alexandre Dumas se baseia em relatos escritos por personagens reais do século XVII. O autor, porém, misturou tão bem história e literatura que é muito difícil separar os fatos verdadeiros dos inventados
O imenso sucesso de Os três mosqueteiros conferiu aos heróis criados por Alexandre Dumas uma verdadeira autenticidade histórica. Ao mesclar fatos reais e inventados, ele misturou história e ficção, mas não hesitou em revelar suas fontes: indicou claramente quais documentos consultou para escrever sua obra.
Foi assim que ele disse ter encontrado por acaso um texto intitulado Mémoires de Monsieur D'Artagnan (Memórias do senhor D'Artagnan) na Biblioteca Real de Paris (na verdade, Dumas retirou o livro da biblioteca de Marselha em 1843 e nunca o devolveu). Escrito por um mosqueteiro do século XVII chamado Gatien Courtilz de Sandras (1644-1712), o texto que conta a vida do verdadeiro D'Artagnan foi publicado originalmente em 1700, na cidade de Colônia, e reeditado diversas vezes, apesar das acusações de que o livro estaria recheado de invenções e mentiras.
Dumas se vangloriava também de ter descoberto um manuscrito desconhecido intitulado Mémoires du comte de La Fere (Memórias do conde de La Fère), no qual achou os outros heróis que lhe faltavam: “Encontramos na vigésima página o nome de Athos; na 27a o de Porthos; e na 31a o de Aramis.”
O romancista se identificou com seu inspirador, Courtilz de Sandras. Nascido em 1644, o antigo mosqueteiro se tornou um especialista em memórias apócrifas depois de mergulhar na pobreza. Além de registrar a vida do verdadeiro D'Artagnan, ele escreveu as biografias do fabulista Jean de la Fontaine (1621-1695); do cavaleiro Louis de Rohan (1635-1674) e do duque de La Feuillade (1631-1691).
O mais célebre dos trios
Assim como D'Artagnan, a vida dos verdadeiros Athos, Porthos e Aramis está registrada em documentos do século XVII, mas ao que tudo indica os quatro não foram contemporâneos na companhia dos mosqueteiros
Athos, Porthos e Aramis realmente existiram. Os três nasceram na Gasconha, região situada no sudoeste da França, entre o rio Garona e os Pirineus, que corresponde à parte francesa do País Basco. Estado independente durante a Idade Média, só foi definitivamente incorporada ao reino da França no fim do século XVI, quando o rei Henrique IV, natural dessa região, uniu suas possessões pessoais aos domínios da Coroa de Paris, dando origem à província do Béarn. Portanto, ao nascerem, no início do século XVII, Athos, Porthos e Aramis já eram todos súditos do rei da França.
Os três pertenciam a uma pequena nobreza local sem muito dinheiro, cuja herança, se houvesse, caberia ao filho mais velho da família. Aos mais novos, os chamados cadetes da Gasconha, restavam duas alternativas: ingressar em uma ordem religiosa ou partir rumo a Paris para mostrar seu valor lutando nos exércitos do rei. Os três futuros mosqueteiros escolheram a segunda opção.
Athos, cujo nome completo era Armand de Sillègue D'Athos D'Autevielle, nasceu em 1615, ao que tudo indica na aldeia de Athos-Aspis, localizada às margens do rio Oloron, a cerca de 50 km de Pau, então a principal cidade da província do Béarn. Seu pai, Adrien de Sillègue, era senhor de Athos e de Autevielle, um pequeno povoado vizinho, situado na margem oposta do rio. Essas terras não eram muito prósperas, e Armand de Sillègue não podia ter pretensões em relação a elas, pois seu irmão mais velho era o herdeiro.
De acordo com Alexandre Dumas, o truculento Porthos, por sua vez, pertencia a uma família protestante originária de Audaux, outra cidade às margens do Oloron. Os documentos revelam que ele se chamava Isaac de Portau e foi batizado em Pau no dia 2 de fevereiro de 1617. O menino certamente havia nascido poucos dias antes, pois a mortalidade infantil e as regras religiosas da época impunham batismos quase imediatos.
As proezas do verdadeiro D'Artagnan
O homem de carne e osso nunca protagonizou as aventuras narradas por Alexandre Dumas, mas viveu uma vida cheia de heroísmo à frente dos mosqueteiros de Luís XIV, que só terminou com a morte em pleno campo de batalha
Por volta de 1630, um jovem chamado Charles de Batz deixou a casa da família em Castelmore, na região da Gasconha, sudoeste da França, para tentar a sorte em Paris. Ele não tinha nem 20 anos e resolveu adotar o sobrenome da mãe: Montesquieu D'Artagnan. Assim começou a carreira do personagem real por trás do mais célebre dos mosqueteiros de Alexandre Dumas.
Ao chegar à capital, D'Artagnan entrou para os exércitos do rei, onde serviu por alguns anos como um soldado qualquer. Depois de passar pela companhia de mosqueteiros do senhor de Tréville, ele foi admitido como “fidalgo ordinário” no serviço do cardeal Mazarino, o principal ministro do reino durante a regência de Ana da Áustria. Agente fiel, ele serviu Sua Eminência durante os momentos sombrios da Fronda, acompanhou-o em suas adversidades e no exílio, atuando como espião responsável por levar à rainha as mensagens mais secretas, arriscando a vida.
As promoções se sucederam: D'Artagnan virou tenente, depois capitão dos guardas, capitão do real viveiro de aves do Jardim das Tulherias e capitão dos cães de caça ao cervo antes de ser nomeado, em 1658, subtenente dos mosqueteiros da guarda montada do rei. Era a consagração.
Três anos depois, Luís XIV, que o apreciava, confiou-lhe uma delicada operação policial: prender o superintendente das finanças do reino, Nicolas Fouquet. O mosqueteiro desempenhou tão bem a tarefa que o monarca só queria D'Artagnan como carcereiro: ele vigiou Fouquet por quatro anos em Vincennes e na prisão da Bastilha, antes de levá-lo ao cárcere de Pignerol, na região do Piemonte, atual Itália.
Armados e perigosos
Não se engane pelo visual cheio de pompa e circunstância: os mosqueteiros eram guerreiros completos
1 - Botas
Feitas com o couro macio de cano alto, eram um requisito básico dos cavaleiros do século 17. Protegiam as pernas dos homens quando cavalgavam, já que as calças eram muito justas. Também eram úteis nas caminhadas dos exércitos reais, pois as estradas eram péssimas
2 - Chapéu
Com abas largas que protegiam da chuva, do sol e da neve, os chapéus de feltro tornaram-se marca registrada da nobreza da época. As cores podiam variar, mas os mosqueteiros preferiam o azul da realeza. O chapéu também dava um ar elegante aos mosqueteiros na hora de cumprimentar as damas da corte
3 - Capa
As capas foram projetadas pelo próprio Luís XIII. Uniforme obrigatório dos mosqueteiros, o tom de azul, que passaria a ser conhecido como royal (real, em francês), destacava a cruz de prata bordada. Com o tempo, tornaram-se símbolo dos mosqueteiros e da própria monarquia. A capa também garantia estadas gratuitas nas estalagens e tratamento especial por parte das mulheres
4 - Mosquete
O mosquete foi a arma de fogo portátil por excelência dos séculos 16 ao início do 18. Armá-lo demorava até um minuto e seu alcance efetivo era de até 100 metros. Era pesado (10 quilos aproximadamente) e exigia o apoio de uma forquilha. Seu cano tinha até 1,5 metro. O equipamento aposentou de vez as armaduras medievais, porque as balas de chumbo que disparava podiam atravessá-las. Foram substituídos,
no século 18, pelos fuzis
5 - Espada
Assim como a capa e o chapéu, tornou-se um dos principais símbolos dos mosqueteiros. Ideal para a luta corpo a corpo e para os duelos. Arma da nobreza por excelência, saber manejá-la requeria um treinamento intenso. Até hoje, os esgrimistas usam manobras criadas por mosqueteiros de Luís XIII
6 - Pistolas
Athos, Porthos, Aramis e D’Artagnan, como os verdadeiros mosqueteiros do rei, também portavam pistolas, um nome genérico para uma série de armas portáteis que reproduziam, em menor escala, os mecanismos de arcabuzes e mosquetes
Livros
História da Vida Privada, vol. 3, Georges Duby, Companhia das Letras, 1999 - Volume dedicado à história dos costumes no século 17
Paris no Tempo do Rei-Sol, Jacques Wilhem, Companhia das Letras, 1998 - A vida na capital francesa sob Luís XIV, rei a quem o verdadeiro D·Artagnan serviu
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