segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

PROSTITUIÇAO NA HUMANIDADE PARTE 4

De deusas à escória da humanidade
A prostituição já foi uma ocupação respeitada e associada a poderes sagrados. Mas, com o surgimento da sociedade patriarcal, a independência sexual e econômica das mulheres restringiu-se e as meretrizes passaram a ser mal-vistas

POR PATRÍCIA PEREIRA



CONDENADAS NA IDADE MÉDIA
Com o declínio do Império Romano, começou a Idade Média. Os invasores, guerreiros bárbaros, organizam a vida não mais em grandes cidades e sim em aldeias agrícolas, que não favoreciam a prostituição como a vida urbana. "As artes civilizadas do amor, do prazer e do conhecimento - o erótico e os demais - desapareceram durante a Idade das Trevas. (...) a antiga tradição de uma sensualidade feminina orgulhosa e exaltadora desapareceu para sempre", afirma Nickie Roberts. A igreja cristã perpetua-se e reprimi a sexualidade feminina, ao censurar a prostituição.
Apesar de condenada, a prostituição foi tolerada pela igreja, que a considerou "uma espécie de dreno, existindo para eliminar o efluente sexual que impedia os homens de elevar-se ao patamar do seu Deus", explica Nickie. A igreja condenava todo relacionamento sexual, mas aceitava a existência da prostituição como um mal necessário. De acordo com Jacques Rossiaud, autor de A Prostituição na Idade Média, "pode-se afirmar, sem receio de erro, que não existia cidade de certa importância sem bordel".
O PROXENETA, DE VERMEER VAN DELFT / TRANSPORTE DE
Nas duas imagens, a mulher é tratada de maneira diferente ao olhar e ao julgamento masculino. À esquerda, a tela holandesa do século XVIII mostra mulheres sendo transportadas para fora da cidade. Ao lado, o pintor Vermeer mostra, no século XVII, uma mulher que satisfaz aos desejos de homens em troca de dinheiro
Havia bordéis públicos, pequenos bordéis privados e também casas de tolerância - os banhos públicos. Além disso, continuavam a existir as prostitutas que trabalhavam nas ruas. Em tese, o acesso aos prostíbulos públicos era proibido para homens casados e padres, mas eles encontravam meios de burlar a legislação. Rossiaud escreve que as prostitutas não eram marginais na cidade, mas desempenhavam uma função. Nem eram objeto de repulsão social, podendo, inclusive, ser aceitas na sociedade e casar-se depois que deixassem a vida de prostituta.
A liberdade sexual só era tolerada para os homens. As mulheres casadas e suas filhas, de boa família, deviam temer a desonra. Mas, de acordo com Rossiaud, essa liberdade masculina não sobreviveu à "crise do Renascimento". Houve uma progressiva rejeição da prostituição, que revelava nas comunidades urbanas a precariedade da condição feminina. "Lentamente, a mulher conquistou uma parte do espaço cívico, adquiriu uma identidade própria, tornou-se menos vulnerável", explica Rossiaud. E houve uma revalorização do casal.
Prostituição e violência aparecem pela primeira vez associadas, devido a brigas, disputas e assassinatos nos locais públicos. Autoridades municipais, apoiadas pela igreja, passaram a coibir a prostituição que, a partir de então, "aparecia como um flagelo social gerador de problemas e de punições divinas", afirma Rossiaud. Um após outro, os bordéis públicos foram desaparecendo. "A prostituição não desapareceu com eles, mas tornou-se mais cara, mais perigosa, urdida de relações vergonhosas", diz Rossiaud. Para o autor, foi o "duplo espelho deformante do absolutismo monárquico e da Contra-Reforma" que fizeram parecer "decadência escandalosa o que era apenas uma dimensão fundamental da sociedade medieval."
"A PROSTITUIÇÃO NAS CIDADES É COMO A FOSSA NO PALÁCIO: tire a fossa e o palácio vai se tornar um lugar sujo e malcheiroso."
SÃO TOMÁS DE AQUINO
FOTO: E.J. BELLOQ
Prostituta de Nova Orleans é fotografada, no início do século XX, pelo fotógrafo E.J. Belloq
UMA PATOLOGIA PARA A MODERNIDADE 
Na modernidade, segundo Margareth Rago, professora titular do departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora de Os Prazeres da Noite, a prostituição ganhou feições diferenciadas. Isso porque as mulheres conquistam maior visibilidade e atuação na sociedade. Surgiram novas formas de sociabilidade e de relações de gênero, com a criação de fábricas, escolas e locais de lazer e consumo. "Foram outros modos de vida, nos quais a mulher vai ter maior participação", diz Margareth.
Apesar da modernização dos costumes, a sociedade ainda é conservadora em relação às prostitutas
Nesse contexto, nasceu o feminismo e a mulher reivindicou o direito de trabalhar e de estudar. O discurso sobre a prostituição ficou forte nesse período e virou debate médico e jurista. "Há um uso, não consciente, da prostituição para dizer que mulher direita não fuma, não sai de casa sozinha, não assobia na rua, não goza. O médico vai dizer que a mulher não tem muito prazer sexual, ela tem desejo de ser mãe. Já o homem tem e, por isso, precisa da prostituta", afirma Margareth.
De acordo com Margareth, é nessa época que as prostitutas passam a ser condenadas como anormais, patológicas, sem-vergonhas; uma sub-raça incapaz de cidadania. E a justificativa vai vir de teorias médico-científicas. "O que acontece é que a medicina do século XVIII usa os argumentos misógenos de Santo Agostinho e de São Paulo, e fundamenta cientificamente o preconceito contra a prostituta", explica Margareth. "Diz que a prostituta é um esgoto seminal, uma mulher que não evoluiu suficientemente. São pessoas que têm o cérebro um pouco diferente, o quadril mais largo, os dedos mais curtos. Criam toda uma tipologia", diz Margareth.
Para a autora de Os Prazeres da Noite, podemos diferenciar a imagem que se construiu da prostituta na modernidade para a visão que temos dela hoje em dia: "Nos últimos 40 anos, mudou muito. O sexo está deixando de ser patológico, de estigmatizar o que pode e o que não pode. Não sei se acontecem mais coisas na cama de casados ou de uma prostituta. A revolução sexual transformou os costumes. Mas a sociedade ainda é conservadora e há forte preconceito contra essas mulheres", diz Margareth.
REFERÊNCIAS 
ROSSIAUD, Jacques. A Prostituição na Idade Média. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. 224 pág. 
RAGO, Margareth. Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paul

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