quinta-feira, 8 de maio de 2014

CALIGULA

A história não foi complacente com Calígula, o detentor de um reinado tão curto quanto violento no primeiro século de nossa era, em Roma. Ele permaneceu no poder de março de 37 até seu assassinato, em janeiro de 41. Foi o terceiro imperador romano, membro da dinastia júlio-claudiana, iniciada por Augusto.

A reputação de louco feroz, capaz de incríveis crueldades, foi construída ao longo de apenas quatro anos de poder, um período curto demais para fama tão arraigada, mas nada indica que ele fosse diferente do que ainda hoje se diz do personagem. O próprio nome Calígula tornou-se sinônimo de atrocidade.

Cabe, contudo, buscar a fonte primordial: a obra A vida dos doze césares, do escritor e historiador Caio Suetônio (69-c.141), que não foi contemporâneo de Calígula, mas ótimo observador dos costumes romanos. Outros historiadores, como Filo (30-50 d.C.), Josefo (37-92 d.C.) e Dião Cássio (data imprecisa do século II), também citaram o imperador em suas obras. Especificamente no caso de Calígula, Suetônio é de longe o mais influente entre os quatro, mesmo que se apontem frequentemente imperfeições em sua obra.

Para conhecer o monstro da antiga Roma, parece uma boa opção desistir de buscar refúgio atrás das crises de epilepsia de Calígula e de algumas insanidades a ele atribuídas. Doenças física e mental explicam uma parte, talvez pequena, da biografia. A outra parte passa necessariamente por sua origem familiar, o ambiente depravado no qual cresceu e, sobretudo, o estado das instituições do Império.

Até porque na Antiguidade a epilepsia simplesmente não era compreendida como hoje. Era um estigma na vida do paciente e uma mancha em sua biografia. Foi preciso que nascessem homens como os escritores Fiodor Dostoievski e Gustave Flaubert ou um teórico e político como Vladimir Lenin, todos epiléticos, para que o mundo passasse a ver a doença de outra forma. A percepção de que doença e crueldade não caminham juntas certamente nem passava pela cabeça dos historiadores antigos.
CNG COINS (HTTP://WWW.CNGCOINS.COM)
Moeda cunhada durante o reinado de Calígula (37 - 41 d.C.), com efígie do imperador em um dos lados (à esq.) e de suas três irmãs, Agripina, Drusela e Júlia
MITOLOGIA PESSOAL
Caio César Augusto Germânico, vulgo Calígula, nasceu em Âncio, província de Roma na região do Lácio, no dia 31 de agosto do ano romano 765, ou seja, no ano 12 de nossa era. Seu pai era Germânico, sobrinho de Tibério, e sua mãe, Agripina Maior, neta de Augusto.

Sendo Tibério filho de Lívio, adotado por Augusto, Calígula pertencia à linhagem de César, alegadamente descendente do lendário Ascânio, filho do troiano Enéas, ele mesmo filho de Vênus. Sua origem, como se vê, se mistura com a mitologia.

Ainda jovem, Calígula manifestava as qualidades do pai, homem de personalidade e de honestidade escrupulosas, além de um general notável. Germânico era amado pelo povo. E, de início, o filho Calígula também era, pois se mostrava brilhante e muito modesto. Frequentava as tropas do pai e se vestia como legionário, exibindo nos pés as caligae (espécie de calçado) regulamentares, o que lhe valeu o codinome.

Mais tarde, entregue às intrigas do círculo de Tibério, ele sucumbiu às promessas de agitadores – em particular de Névio Sutório Macro, o líder da guarda pretoriana, que garantia a segurança do imperador. Era tal o poder de um prefeito pretoriano à época que por vezes ele assumia a condição de “segundo homem” do Estado. Macro preparava em segredo a sucessão do imperador e mobilizou todos os meios para que a dignidade imperial coubesse a Calígula. Foi então que surgiram os primeiros sinais da nova vida de desregramento do jovem herdeiro, que desembocaria em ligação explícita com a irmã, Agripina Menor, a futura mãe de Nero, e de todo tipo de fantasias bissexuais.
MUSEU ROMANO-GERMÂNICO, COLÔNIA (AGRIPINA) / GLIPTOTECA DE MUNIQUE /© BIBI SAINT-POL/CREATIVE COMMONS (DRUSELA)
Agripina Menor (à esq.) e Drusela (à dir.), duas irmãs com quem Calígula mantinha relações sexuais. O imperador também as obrigava a se prostituir Agripina Menor e Drusela, esculturas em mármore, autor desconhecido, sem data
Um episódio narrado pelo historiador Públio Cornélio Tácito (55-120 d.C.) atesta a atmosfera que reinava em torno de Calígula. Certa vez, o imperador Tibério aportou no cabo Miseno, em Catânia, hoje região da Sicília. Seu médico pessoal não tardou a atestar que o velho não tinha mais que dois dias de vida. Foi o que bastou para que se instalasse uma rede de intrigas palacianas.

Nas palavras de Tácito: “No dia 17 das calendas de abril, Tibério mergulhou em uma inconsciência profunda: acreditou-se que ele estava morto. Caio [o nome verdadeiro de Calígula], já em meio às felicitações de uma numerosa corte, saía para tomar posse do Império quando alguém veio subitamente anunciar que Tibério recuperava a consciência, a fala. (...) Caio, em um silêncio morno, não esperava outra coisa senão o suplício; Macro, mais ousado, mandou sufocar o ancião sob uma pilha de cobertores, e ordenou que todos se retirassem. Assim desapareceu Tibério, aos 78 anos de idade”.

E assim começou o reinado de Caio Calígula.

Mas quem comandava o jogo a partir de então? Seguramente não era Calígula. O imperador não passava de um chefe dos exércitos que devia seu poder a um bandode guerreiros que o escolheram para comandante.

Aparentemente, tudo estava de acordo com as leis. Havia um Senado, guardião das instituições romanas. Havia magistraturas, todas respeitadas. Calígula foi reconhecido como imperator, mas também era cônsul, pretor, censor, edil, “tribuno do povo” e, sobretudo, grande pontífice, mestre da religião oficial romana.
ROGER-VIOLLET /TOPFOTO/KEYSTONE
O imperador aproveitava espetáculos de gladiadores para lançar inimigos às feras, assim como combatentes que demonstrassem fraqueza Calígula retratado por Suetônio, ilustração de Gustav Surand, 1901
Só que o conjunto abrigado sob a denominação de Império Romano, com um líder inconteste à frente, não era mais que uma gigantesca vigarice. Simplesmente porque por trás de um personagem que desempenhava o papel principal agiamos que o manipulavam. Essa era a fraqueza e o paradoxo do sistema.

O imperador era necessário, pois era a imagem do poder de Roma. Nessas condições, deixava-se que ele agisse como bem quisesse, desde que não contrariasse os interesses da classe dirigente. O povo nunca intervinha, pois os habitantes de Roma já não eram os virtuosos cidadãos da República, o regime que vigorou de 509 a.C. a 27 a.C. No Império a população, de modo geral, poderia ser comparada a uma multidão de desocupados e mendigos que se calavam se fosse distribuída comida e providenciadas distrações, como os combates do Circo.

Calígula adorava presidir essas festas, aliás. Ele se sentia o senhor e mestre de Roma e se regozijava ouvindo elogios a sua pessoa e majestade e notando a bajulação que fortalecia sua indomável megalomania. Paralelamente, se desenvolvia dentro do jovem imperador uma paranoia igualmente invencível. Roma teve o azar de essa pessoa ser o homem a quem o Estado facultava decidir, em nome da coletividade, o que era bom ou mau, quem obteria os favores do governo e, pior, quem deveria ser eliminado.

Os crimes de Calígula passaram a ser incontáveis. E suas fantasias e excentricidades também. Sobre isso, o historiador Suetônio conta que o imperador presenteou o cavalo com uma estrebaria feita de mármore, uma dentadura de marfim, sem falar de uma casa e de empregados para tratar esplendidamente os convidados em nome do animal. Diz-se que quis transformar o quadrúpede em cônsul.
DIVULGAÇÃO
Cena do filme Calígula, de 1978, na qual o diretor Tinto Brass recria uma orgia na corte do terceiro césar
Como seu orgulho não tinha limites, ele mandou fazer uma estátua de si mesmo, como se fosse Júpiter, e ordenou que fosse colocada no Templo de Jerusalém. Júpiter não é um deus qualquer da mitologia romana, derivada da grega. É o senhor do Olimpo, pai de muitos outros deuses, como Marte e Vênus, por exemplo. E o Templo de Jerusalém – no caso, o segundo – era o secular local de culto de Deus de Israel.

Nessas agressivas incursões mitológicas e religiosas, a loucura de Calígula não deixava de ter natureza mística. Mesmo seus desregramentos sexuais tinham algo de sagrado. O incesto remetia ao casamento dos faraós com as respectivas irmãs. Já a orgia era uma ativação das forças cósmicas, por meio da qual se atingia o sublime. O imperador queria se transformar em um deus.

Ocorre que nesses assuntos da alma a mentalidade da população trilhava caminhos distintos. A religião romana rejeitava a teofania, ou seja, a encarnação de um deus exterior nos vivos. A palavra-chave da mística romana era a apoteose, o rito funerário que divinizava o defunto. O primeiro imperador romano, Otávio Augusto, por exemplo, havia recusado em vida as honras divinas. Teve, porém, direito a uma apoteose depois de morto. Calígula, porém, não quis esperar a morte para se tornar um deus.

Em virtude da exigência do sistema romano de que o imperador fosse eleito, chegou o momento em que os que governavam efetivamente já não precisavam de personagem tão tresloucado apenas para fazer a figuração. Os excessos de Calígula deveriam andar tão insuportáveis que os verdadeiros governantes de Roma decidiram se livrar dele. Foi mais uma vez o chefe da guarda pretoriana que comandou a ação. Em 24 de janeiro do ano 41, Calígula foi assassinado e substituído por Cláudio.
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